Padre Dehon e os Dehonianos

Um quadro vivo

O Pe. João Leão Dehon (1843 –1925) é o fundador dos “Sacerdotes do Coração de Jesus” (Dehonianos). Francês de origem, romano de adopção. De facto ele sempre considerou Roma como sua segunda pátria, não só por ter feito lá os estudos filosóficos e teológicos em preparação ao sacerdócio, mas também pela longa e amigável familiaridade que pôde manter com os “seus” papas:Pio IX, Leão XIII, Pio X, Bento XV e Pio XI e, não último, pela paixão com que quis difundir a sua Congregação na Itália. É nesta luz que podemos compreender o que ele escreveu ao reentrar em França no final dos seus estudos: “Vou deixar Roma e com muita pena. Passei aqui anos verdadeiramente cheios, bem passados, graças a Deus, e cujo valor só virei a saber lá no céu. Com grande consolação trago comigo ricos tesouros: o sacerdócio, a ciência eclesiástica, bons hábitos e outras recordações”.
Estes os seus sentimentos, as suas convicções, mas qual é o pensamento daqueles que o conheceram? Na crónica do seminário francês em Roma temos o precioso testemunho do reitor desse tempo, o Pe. Melchiorre Freyd, que traça o seguinte perfil: “Leão Dehon da Diocese de Soissons. Entra a 25 de Outubro de 1865. Sai no 1º de Agosto de 1871. Carácter: excelente. Capacidade: grandíssima. Piedade e regolaridade: perfeitas.

Mais:

“O Dehon, jovem doutor em Direito, advocado no Supremo tribunal de Paris, depois de uma viagem pelo Oriente – aconselhada pelos pais a fim de provar a sua vocação à qual se opunham terminantemente – veio ter connosco para começar os estudos eclesiásticos. Fez uma boa filosofia no Colégio Romano, acrescentando o estudo de Direito Canónico no Apollinare. No Concílio Vaticano I foi um dos nossos quatro estenógrafos. O sucesso nos estudos foi notável. Várias vezes foi premiado. Teve de adiar os seus exames de doutoramento por causa do muito tempo que o Concílio lhe pediu. Voltou em 1871. Trabalhou com o mesmo empenho e conseguiu o doutoramento em Teologia, no Colégio Romano e em Direito Canónico no Apollinare. Tudo com muito successo. Sob todos os aspectos era o melhor aluno. Piedade, modéstia, seriedade, regularidade, amor filial aos seus professores, aplicação enérgica; tudo nele era amável. Actualmente é coadjutor em S. Quintino na sua Diocese. Promete muito para o futuro”. Os grandes traços da sua fisionomia humana, intelectual e espiritual estão já delineados. Pode-se completar o quadro com mais uma pincelada, de vinte anos depois. O Pe. Dehon é já um famoso sacerdote sociólogo e foi convidado a fazer uma conferência em Milão. O cronista apresenta-o em poucas palavras: “O Pe. Dehon é um homem alto (1,82 m), aspecto distinto, vulto inteligente, fala com exactidão e medida singulares e mostra-se muito preparado sobre os argumentos que mais interessam à vida moderna” (Osservatore Cattolico, 11 maggio 1897). Com estas citações temos diante de nós o esboço do quadro. Parece feito de propósito para despertar a nossa curiosidade de saber mais alguma coisa, não só acerca da sua vocação contrastada, mas, ainda mais, sobre aquela profecia do seu superior romano anunciando um futuro promisor para o jovem sacerdote.

Não gostava de cavalos

Nasce a 14 de Março de 1843 e é baptizado a 24 de Março, vigília da festa litúrgica da Anunciação, com os nomes de Leão Gustavo. É o segundo dos dois filhos varões da família de Júlio Dehon e de Estefânia Adélia Vandelet. Os Dehon são dos mais notáveis de La Capelle, aldeia do nordeste, perto de S. Quintino, e são grandes proprietários de terrenos. Dispõem também de uma cavalariça, com cavalos de corrida. A presidência do município passa do avô para o pai e deste para o filho mais velho, o Henrique. Os dois filhos revelam imediatamente tendências completamente diversas. Enquanto o Henrique segue o pai, o sr. Júlio, e adora os passeios montado na garupa dos cavalos, Leão prefere estar em casa com a mãe e entreter-se com os livros. Quanto à religião, a linha masculina dos Dehon não é praticante. É opinião corrente na zona impregnada de ideias cientistas e outros vestígios da revolução francesa, que a religião é só para mulheres e crianças. Os homens podem bem dispensar-se dela. Ao contrário, a mãe é muito religiosa e particularmente devota do Coração de Jesus. É mais que natural que o pequeno aprenda da mãe os traços da sua religião.

A tempestade da adolescência

Leão é precoce, e não só de inteligência, mas até no crescimento físico. Quase de improviso rebenta a tempestade da adolescência. Frequenta a escola da terra onde de religião há bem pouco. Toda uma rapaziada desenfreada e gaiata. Por natureza Leão tem um carácter bom e amável, mas aí pelos 10-11 anos torna-se vaidoso, colérico, desajeitado e preguiçoso. Somente a vivacidade da sua inteligência o salva. Nunca ficou reprovado. Quanto ao resto é o tormento dos pais e sobretudo da mãe. É mesmo nesta altura que é admitido à primeira comunhão (4 de Junho de 1854). Mais tarde vem a falar dela como de uma das lembranças mais belas, mas na prática, as coisas ficam como dantes. É então que os pais pensam numa solução radical: ele e o seu irmão Henrique irão continuar os estudos no colégio de Hazebrouck.
Para Leão é a salvação. O aspecto da casa é desolador, o regime muito severo: levantar muito cedo, muito estudo, pão preto, frio e pouquíssimas férias. Mas, em compensação, os professores sao excelentes e sabem educá-lo até ao gosto pela oração e pelas obras de caridade.
O caminho da formação é sério. Teve a graça de encontrar o auxílio necessário para sair da crise moral, típica daquela idade. Mas também ele não se poupou os esforços; às vezes até não hesita em usar o flagelo e dormir sobre tábuas. Assim aprende a ter juízo. Sai do Colégio aos 16 anos com o diploma do liceu. Passou lá – dirá mais tarde – anos belíssimos.

Uma telha na cabeça do pai

Um futuro luminoso para os filhos é sempre o sonho de todos os pais. O bom êxito dos estudos fornece ao sr. Júlio bons motivos para sonhar uma carreira brilhante em magistratura ou em diplomacia para o seu filho Leão. Mas, no colégio, na noite de Natal de 1856, Leão tinha tido uma experiência espiritual extraordinária. Enquanto ajudava à missa, sentiu uma forte atracção para o sacerdócio e no mesmo instante, tinha dito que sim ao Senhor que o chamava. Não era fruto de emoção passageira, porque nos anos seguintes ficou sempre firme na sua determinação. O problema agora é como dizê-lo ao pai. É o tempo das matrículas e é preciso decidir. Procura o momento mais favorável, mas o golpe é tremendo. Naquele momento aproxima-se a mãe; compreende tudo e desata a chorar. O pai só tem uma única palavra: “Nunca!”. Nos dias seguintes chega-se a um compromisso: Leão concorda em esperar até à maior idade. Faltam ainda cinco anos e o pai pode esperar que entretanto aquela ideia tão estranha desapareça da cabeça do filho. Leão deve matricular-se no Politécnico, muito embora não seja nada segundo as suas inclinações. Além disso, para poder fazer tal curso deve submeter-se a exames suplementares que lhe prolongam de um ano a mais os estudos. É evidente a intenção do pai. Leão obedece e, com enorme esforço alcança o diploma na Secção de Ciência. É claro que não é este o seu campo. E, teimoso como é, inscreve-se ao mesmo tempo na faculdade de Direito, mas sem obrigação de frequentar muito as aulas e sem exames. O pai deixa-o continuar a estudar Direito, mas para não sair do curso deve recuperar algumas disciplinas. Fá-lo à sua maneira: em seis meses consegue fazer todos os exames de dois anos. Aos 19 anos é advogado e aos 21 doutor em Direito no supremo tribunal de Paris. O seu pai não cabe em si de contente, sente-se orgulhoso com este seu rebento. De toda a parte chovem os parabéns e chegam até viagens em prêmio.

A arma das viagens

Leão goza de uma inata curiosidade intelectual e vagueia por horizontes infinitos. As boas possibilidade da sua família podem favorecer a sua paixão pelas viagens, pelo conhecimento das línguas e culturas diversas. Já tinha estado um mês em Londres para aprender a língua. Tinha já feito uma viagem pela Alemanha, a Áustria, e Escandinávia até ao Círculo Polar Ártico. O prémio pelo doutoramento é uma estadia na Bélgica e na Holanda, em companhia do amigo Palustre, óptimo professor de arqueologia. Tudo muito bem. Mas aquele famoso nó permanece e é preciso desatá-lo, porque Leão já atingiu a maior idade. O pai ilude-se; aquela ideia tonta não lhe fugiu da cabeça. Ao contrário, está lá, fixa, e Leão confirma ao pai o seu propósito de a realizar. Acrescenta ainda que, em caso de recusa, entende valer-se do direito da sua maior idade. Mais uma vez a mesma cena dramática como na primeira comunicação e, mais uma vez a única palavra do pai é “Nunca!”. Nesta altura chega providencial a intervenção do amigo Palustre; por que não tentar distraí-lo com outra viagem pelas terras da antiguidade clássica? O Palustre apresenta tão bem a ideia que o pai, disposto a agarrar-se a qualquer esperança, acaba por consentir.

A vocação confirmada nos lugares santos

Para o sr. Júlio fica bem visitar a Grécia, o Egipto, a Ásia Menor e, no último momento, acha que se pode acrescentar o mundo da civilização hebraica. Estamos no ano 1864 e Leão tem exactamente 21 anos. A viagem apresenta-se muito longa, mas com o amigo arqueólogo também muito instrutiva. Vale a pena fixar ao menos as etapas principais desta viagem que será determinante. Os dois amigos partem a 23 de Agosto, atravessam a Alemanha e a Suiça, descem a Itália até Bolonha, sobem depois até Veneza (então sob o domínio da Áustria), descem à Grécia, passam pela Turquia e finalmente chegam à Palestina. Se se pensa nas viagens de então, não admira que tinha havido perigosos acidentes de percurso, como encontros com salteadores ou com os perigosos chacais. Por duas vezes Leão está mal; socorre-o Nossa Senhora. A primeira vez é uma chaga dolorosa num pé. Está no monte Carmelo, invoca a Senhora e no dia seguinte a chaga já desapareceu. A segunda vez é mais grave, quando em Tróade apanha um febrão que o reduz ao extremos. Também desta vez a Senhora intervém inesperadamente e o nosso jovem fica curado. Desde o dia da partida, fizeram muita estrada, mas só a 25 de Março do ano seguinte é que os dois peregrinos se encontram em Jerusalém, onde visitam todos os lugares santos. Podemos facilmente imaginar com que sentimentos Leão percorreu aquela “Via Crucis” e parou longamente junto do Santo Sepulcro. Temos ainda as suas notas como testemunho fiel. A nós basta a certeza de que toda esta longuíssima viagem não conseguiu abalar minimamente a sua vocação, mas pelo contrário confirmou-a na sua determinação. É o que vamos ver já, no regresso. Os dois amigos não têm pressa e regressam passando por Chipre, Efeso, Constantinopla e Salisburgo. Aqui as estradas dividem-nos: o Palustre continua a viagem para a França, Leão toma o comboio para Roma onde chega a 14 de Junho de 1865. Não foi uma decisão fácil. Para ele Roma era a meta ou como ele próprio afirma, “a conclusão feliz” da sua viagem. Mas os pais...? Para só dez dias em Roma. Trazia consigo umas cartas de recomendação que o ajudariam a encontrar-se com algumas personalidades e principalmente obter um encontro pessoal com o Papa Pio IX, que abençoa a sua vocação e o aconselha a fazer a sua preparação ao sacerdócio em Roma, no seminário francês de S.ta Clara.
Em casa os pais esperavam-no ansiosos e acolhem-no com um abraço fortíssimo. Mas no fundo-fundo lá está o nó do seu futuro. A persistente oposição familiar obriga Leão a assumir uma atitude decidida. Eis como ele próprio fala: “Tive de endurecer o meu coração para resistir a todos os assaltos que tive de suportar. Algumas vezes fui duro com os meus pais. Disse-les que já tinha a maior idade e que queria ser livre. Resolveram deixar-me partir, mas cenas e lágrimas nunca faltaram”.

Finalmente sacerdote

A 25 de Outubro de 1865 Leão está em Roma, no seminário francês de S.ta Clara. O seu quarto está lá nos altos do edifício. É pequeno e escuro, a cama é dura; não importa, sente-se feliz, está no seu ambiente. Os estudos correm muitíssimo bem; os primeiros prémios são todos seus. Com alguns amigos forma um grupinho que se põe a disposição do pároco da Minerva para a catequese e obras de caridade. Logo no primeiro ano recebe a batina e já nas férias seguintes os seus amigos e familiares começam a habituar-se a vê-lo assim vestido. Depois do 3º ano é diácono. Quando vai de férias é vê-lo magnificar a sua Roma antiga e falar da sua Roma Papal, tanto que os pais começam a sentir o desejo de a visitar. Efectivamente, no fim de Outubro de 1868 chega a Roma em companhia dos pais. Para seu pai é a descoberta de um mundo novo que seu filho sabe lindamente ilustrar. Mas a surpresa acontece alguns dias mais tarde. O reitor do seminário tem uma ideia fulminante: “Porque não pedir uma audiência ao Papa?”. “Ao Papa, diz o sr. Júlio?”. “Com certeza. E nesta altura pede-se a ordenação anticipada e assim os pais podem estar presentes”. “Mas será possível? E como”? “Muito simples. Basta que o pai do Leão apresente o pedido por escrito”.
É claro que o Pe. Freyd já tinha posto em acção todos os seus conhecimentos. E acontece o inesperado. A audiência fica marcada para 16 de Novembro e nessa altura o papá Júlio apresenta comovido e a tremer o seu pedido, que naturalmente é logo concedido. A ordenação acontece a 16 de Dezembro de 1868 na basílica de S. João de Latrão, mãe de todas as igrejas. Os ordenandos são 200, provenientes de todas as partes do mundo. O pai não tira os olhos do filho que sobressai a todos. Passa aquele dia sem dizer palavra, sem tocar alimento. Só se confessa. No dia seguinte, durante a primeira missa em S.ta Clara, quando o pai e a mãe recebem a Eucaristia das mãos do filho, ninguém consegue conter as lágrimas de comoção. Deus é grande! Leão está fora de si de contente. “Levantei-me sacerdote, possuído por Jesus, completamente cheio d’Ele, do seu amor às almas, do seu espírito de oração e de sacrifício”. E que dizer da conversão do seu pai? Uma frase diz tudo: “Foi o dia mais feliz da minha vida”. E podemos acreditar: é ele, o Pe. Leão, quem o diz.

Estenógrafo no Concílio Vaticano I

Os estudos estão chegando ao fim. Falta só o último exame de “Universa theologia”, o mais vasto e difícil. Mas a complicar as coisas chega de improviso a convocação do Concílio Vaticano I. São precisos 24 estenógrafos e, entre os quatro escolhidos no colégio de S.ta Clara está também o Dehon. Para isso é necessária uma preparação específica que requer muito tempo. Naturalmente o exame fica suspenso. Mas a coisa não desagrada assim tanto ao Pe. Dehon, porque lhe cai mesmo do céu uma ocasião única de participar num concílio e de conhecer directamente o coração da igreja. Entretanto surge um facto preocupante. Aquele ano tinha sido esgotante: a visita dos pais, a ordenação sacerdotal, as aulas de teologia no Colégio Romano e de Direito no Apolinare e, além disso, a preparação como estenógrafo. O fisico está muito debilitado. Em Junho tem de ir para a cama com febre, tosse persistente e suspeita prostração geral das forças. O quadro da doença pulmonar é claro. Mas Nossa Senhora olhava por ele. Está ainda para saber quem lhe terá enviado uma encomenda anónima com um frasco de água de Lourdes e um cordão de S. José. Bebe a água e sente-se curado. Passados alguns dias põe-se em viagem. Esperam-no a família e as festas das suas primeiras santas Missas.

Um triste intervalo de guerra

A 20 de Julho o Pe. Leão volta para casa a toda a pressa. Foi por um triz que conseguiu chegar antes que rebentasse a guerra entre a França e a Alemanha. Os exércitos franceses são aniquilados pelas tropas prussianas. No 1º de Setembro é o desastre de Sédan. Segue-se a prisão de Napoleão III e a proclamação da república. Os Piemonteses aproveitam a ocasião para invadir o Estado Pontifício e a 20 de Setembro entram em Roma. La Capelle fervilha de tropas e feridos. Dehon faz-se em dois para assistir espiritualmente a todos. O tempo que lhe resta passa-o lendo autores filosóficos e históricos que o ajudam a compreender o seu tempo. São um complemento dos seus estudos eclesiásticos. Ser-lhe-ão muito preciosos no seu futuro ministério.
A 26 de Fevereiro de 1871 é assinado o armistício que leva à paz. Mas a Europa já não é a mesma. Também Roma na mão dos Piemonteses e o Papa prisioneiro no Vaticano, está completamente mudada. O Dehon tem de lá voltar para completar os estudos. Acha tudo calmo, mas os invasores estão difundindo os princípios laicos e revolucionários. Nas suas cartas aos pais exprime-se muito negativamente sobre os novos patrões. A sua esperança é que esta “canalha” seja quanto antes posta na rua. Nestes juízos deixa transparecer o seu sofrimento porque a actual capital da Itália já não é aquela que ele conhecia: a sua Roma da cristandade.
Não obstante tudo, ele prepara os exames com a sua habitual seriedade. A 2 de Junho é doutor em Teologia e a 23 de Julho, em Direito Canónico. Com quatro doutoramentos (Direito Civil e Canónico, Filosofia e Teologia) pode-se dizer que a sua preparação intelectual é excepcional. O seu futuro não pode ser senão no campo do estudo e da ciência. E é também este o sonho do jovem padre.

Coadjutor em S. Quintino

Mas as coisas vão ao contrário, noutra direcção. Com grande maravilha de todos aqueles que o conhecem, o seu bispo nomeia-o coadjutor em S. Quintino, sétimo e último dos vigários paroquiais. Acertada ou não, aquela decisão serve de maneira providencial para lançar o jovem padre intelectual no meio de problemas concretos e às vezes até urgentes do povo. Para o jovem vigário não é preciso muito para compreender a situação social e religiosa que o circunda. S. Quintino pode chamar-se uma cidade industrializada, mas os operários, abandonados a si mesmos, sofrem a triste condiçao operária dos finais do século XIX que todos conhecemos. O Dehon não pára nos palácios, mas vai ver os casebres e as tabernas cheias de operários que embrutecem com o alcool, os miúdos e os jovens sem destino a vaguear pelas estradas. A igreja está meia deserta e muitos evadem-se da frequência à escola. Por onde começar? Dehon compreende que a pastoral ordinária não basta, porque não vai além dos pequenos grupos de pessoas, assim chamadas por “boas”. A par da acção religiosa é necessária, também, a social. É preciso tirar os miúdos da estrada, apoiar os pais e os filhos, oferecer uma sã informação religiosa que se sobreponha ao laicismo imperante. Ele não se limita às contestações, mas passa imediatamente à acção. Em pouco tempo põe de pé um patronato que dedica a S. José, para a educação dos jovens (1873), e faz nascer um novo jornal católico, “ O conservador do Aisne”, um título que revela as ideias do tempo. Logo a seguir surgem um círculo para os operários, um círculo para os estudantes e, coisa maravilhosa, as reuniões dos industriais.
Começa a participar em encontros de carácter social. A sua actividade torna-se vertiginosa e atrai sobre si a estima de todos. O bispo está contente e nomeia-o, só com 33 anos, cónego honorário da catedral. Por tudo o que estamos a dizer, é evidente que a sua ideia de padre é muito diferente daquilo que se pensava então: não pode o padre limitar-se só às coisas espirituais, às cerimónias, à sacristia. Como Jesus, o padre não pode ignorar os problemas reais da sua gente. O jovem cónego, seguro da sua séria preparação cultural e espiritual, alarga o seu raio de acção. Está presente nos congressos sociais e nas assembleias gerais, entra em contacto com outras personalidades que já trabalham neste campo; participa também no congresso organizado pelo jornal católico “La croix”, e nos congressos da democracia cristã. Sempre e cada vez mais é convidado a dizer a sua palavra; torna-se um nome conhecido em toda a diocese e, como veremos, também a nível nacional.
Portanto tudo bem? Parece que não. O jovem sacerdote não está satisfeito consigo mesmo: as obras absorvem-no de tal maneira que não lhe fica tempo para o estudo, a oração e para o necessário repouso. Quanto mais se multiplicam estas actividades, tanto mais cresce nele esta insatisfação. Vai-lhe nascendo lentamente no coração o anseio pela vida religiosa. Sente-se fortemente atraído para ela. Em Março de 1876 pára. Faz um retiro espiritual e nele quer procurar a vontade de Deus. Sai ainda mais convencido pela vida religiosa, embora não saiba ainda que Instituto escolher. No meio da neblina há um ponto claro de referência: a devoção ao Sagrado Coração de Jesus que tinha bebido com o leite materno.

Nascem os Dehonianos

A Providência divina tem os seus planos. O seu bispo, D. Thibaudier precisa de ir a Roma e pede ao seu jovem cónego para o acompanhar. Passam pelo santuário de Loreto. Aqui acontece algo de imprevisto. O Dehon pede luz à Nossa Senhora para as decisões que tem de tomar: se entrar em alguma ordem religiosa e, em caso afirmativo, em qual. Em resposta recebe uma forte impressão, como se Nossa Senhora lhe dissesse: “Porque não fundas tu o Instituto que procuras em vão?” Tudo permanece ainda muito confuso, mas no seu coração está disposto a tudo. Num bilhete postal enviado mais tarde de Loreto escreve: “Foi aqui, (na Santa Casa) que nasceu a Congregação em 1877”. De facto, desde então, no centro da sua meditação estão presentes as disposições interiores de Jesus e de Maria, no mistério de Incarnação (“Ecce venio”, e “Ecce Ancilla Domini”).
Muito satisfeito com a intuição havida na Santa Casa, fica-lhe a dúvida do autoengano. Como homem prudente, aguarda os acontecimentos. A viagem prossegue até Roma. Juntamente com o bispo é recebido em audiência pelo papa Pio IX. O Santo Padre lembra-se bem do jovem advogado que queria ser sacerdote e que o tinha recebido com os pais e com o grupo dos estenógrafos. É a última audiência com Pio IX e o Dehon descreve-o como um santo. Para o jovem sacerdote, fundar um Instituto não seria tarefa muito fácil, olhando para as actividades que já tinha em andamento e que exigiam a sua presença. Depois de tanto pensar, o bispo faz-lhe uma proposta que lhe permite iniciar: fundar um colégio – de que há extrema necessidade – para a educação da juventude e, em função deste, o novo Instituto dedicado ao Sagrado Coração de Jesus. O bispo acha bem as duas coisas unidas e a 13 de Julho de 1877 escreve-lhe: “O projecto da fundação do Instituto goza de toda a minha simpatia . Da minha parte asseguro-lhe a minha colaboração na medida em que eu achar ser a vontade de Deus. É meu desejo que seja o senhor a realizar esta obra”.

O Pe. Dehon não se põe com demoras:

a 16 de Julho dá início a um retiro para estender um esboço do novo Instituto. A 31 de Julho começa sozinho o noviciado que termina a 28 de Junho de 1878, data do nascimento do Instituto, inicialmente denominado “Oblatos do Sagrado Coração de Jesus”. Entretanto põe em andamento a compra de um edifício para o colégio: são logo 500 francos, seguidos de mais 20.000, quase todos do seu bolso. Ao terminar o seu noviciado, emite o três votos religiosos e também o de vítima do Sagrado Coração. Este último voto é difícil de compreender, mas dito em poucas palavras é a oferta de si mesmo em reparação das ofensas ao Sagrado Coração, tal como foi pedido a S.ta Margarida Maria Alacoque. Não obstante o desejo do Pe. Dehon de estendê-lo a todos os membros do Instituto, este voto será sempre deixado à liberdade de cada um.

Quanto custa uma vida

O edifício comprado vai ser a sede do colégio dedicado a S. João. A fim de poder acolher os alunos para o ano escolar, é preciso adiantar com os trabalhos de reestruturação do edifício. As canseiras em que se sobrepõem, abalam fortemente a saúde do Pe. Dehon. As golfadas de sangue repetem-se em forma gravíssima. A sua fibra, já muito frágil vai ceder. Os médicos contam-lhe os meses de vida. Muito perto dele e da sua obra estão as irmãs “Servas do Sagrado Coração”. Quando souberam que ao Pe. Dehon, segundo o parecer dos médicos, não ficam mais que 3 meses de vida, começam uma campanha de orações e sacrifícios que só Deus sabe. Uma jovem religiosa, a irmã Maria de Jesus oferece a sua vida em vez da do Pe. Dehon, pedindo ao Senhor 15 meses para se preparar. Contrai a mesma doença e, passados 10 meses o Senhor chama-a para o céu. Coincidência? A irmã Maria é também irmã mais nova da fundadora das Servas do Sagrado Coração, a Madre Ulrich. Poucos dias depois da morte da irmã, a Madre Ulrich entrega ao Pe. Dehon um envelope dizendo-lhe que dentro estáva a caneta com que a sua irmã tinha assinado o acto de oferta da sua vida. Logo que a irmã acabou de assinar o acto de oferta, uma força invisível arrancou-lhe a caneta de ferro das mãos e conterceu-a toda. Aquela caneta ainda existe. Está em Roma no museu da Congregação.

Crescimento da Congregação

O Pe. Dehon recupera-se da sua doença mortal e sabemos a que preço. Nunca o esquecerá. Começou sozinho e o seu estado de saúde não dá garantias para o futuro. Mas os caminhos de Deus são sempre surpreendentes. Enquanto o Pe. Dehon está em perigo de morte, chega o Pe. Afonso Rasset. É o primeiro de um grupinho de sacerdotes que vão ajudando no Colégio S. João que o Pe. Dehon guiará até o ano 1893.Aqui vale a pena notar uma mudança em relação ao fundador. Podemos defini-la de aberta oposição. O motivo principal é o colégio. Diferentemente de todas as outras obras, o Colégio S. João é declaradamente católico. Para os laicistas e mações, o Dehon é um inimigo a combater. A situação agrava-se em 1881 com um incêndio que destróe dois pisos do edifício. Mas há um sinal providencial que não o deixa desanimar: as chamas da fogueira param diante da estátua do Sagrado Coração, respeitando completamente a arcada que a protege. E é em nome do Coração de Jesus que se recomeça. Primeiro reparando os danos do incêndio, mas também alargando os horizontes a procura de segurança. De facto o governo maçónico da Terceira República está preparando leis hostis à religião que culminarão com a expulsão dos religiosos e confiscação dos bens (antes, os famosos decretos de Março de 1880 e mais tarde o anticlericalismo de Estado com o ex-seminarista Emílio Combes, 1902).
Aqui vale a pena notar uma mudança em relação ao fundador. Podemos defini-la de aberta oposição. O motivo principal é o colégio. Diferentemente de todas as outras obras, o Colégio S. João é declaradamente católico. Para os laicistas e mações, o Dehon é um inimigo a combater. A situação agrava-se em 1881 com um incêndio que destróe dois pisos do edifício. Mas há um sinal providencial que não o deixa desanimar: as chamas da fogueira param diante da estátua do Sagrado Coração, respeitando completamente a arcada que a protege. E é em nome do Coração de Jesus que se recomeça. Primeiro reparando os danos do incêndio, mas também alargando os horizontes a procura de segurança. De facto o governo maçónico da Terceira República está preparando leis hostis à religião que culminarão com a expulsão dos religiosos e confiscação dos bens (antes, os famosos decretos de Março de 1880 e mais tarde o anticlericalismo de Estado com o ex-seminarista Emílio Combes, 1902).
A estratégia do momento leva a abrir comunidades fora do território francês. E assim o Pe. Dehon funda casas na Bélgica, no Luxemburgo, na Holanda e na Alemanha, com a vantagem da dimensão internacional das estruturas necessárias a todo o currículo da formação sacerdotal. Os padres dehonianos, que entretanto cresceram em número, exercem o seu apostolado nas paróquias, nas missões populares e na educação da juventude. Muito importante também o empenho social nos estabelecimentos de Leão Harmel em Val du Bois, perto de Reims. O famoso industrial Harmel tinha conhecido o Pe. Dehon nos congressos sociais e tinha feito de tudo para ter os dehonianos como assistentes espirituais. De facto o Harmel tinha dado à sua fábrica um rumo novo e revolucionário, pondo à disposição dos operários e suas famílias uma igreja, salas de acolhimento para os jovens e para os operários. O Pe. Dehon e os seus padres junto com Leão Harmel fazem de Val du Bois uma fábrica modelo e também um centro de formação sociológica para seminaristas, sacerdotes e até para leigos

As grandes provas

Os inícios da nova Congregação nem sempre foram fáceis. Pelo contrário o Pe. Dehon e os seus religiosos têm de passar por momentos muito difíceis e dolorosos, devido não só às condições sociais, mas também a erros, incompreensões e perseguições. Pe. Dehon, pessoa muito inclinada a dar confiança, acolhe as confidências divinas da parte de Nosso Senhor. Acolhe-as e até as considera material precioso, sobre o qual pode basear a espiritualidade da nova fundação. Ao apresentar à Santa Sé o pedido de aprovação do Instituto, houve alguém que inseriu na documentação referências a esta fonte. A resposta da Santa Sé é absolutamente negativa: o Instituto dos Oblatos do Sagrado Coração fica suprimido. O Pe. Dehon, fortemente abalado submete-se à vontade de Roma. Define tal decisão como o seu “consummatum est”. Limita-se a obedecer e esclarecer, confiante de que o Sagrado Coração de Jesus quer esta Obra. De facto, bem depressa as coisas se esclarecem e o Instituto pode reviver, mas com outro nome oficial: “Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração”.
Recomeça mais vivo do que nunca, graças à humildade, à fé e à tenacidade do seu fundador. Em 1882 o Pe Dehon encontra-se, por acaso, em Paris com D. Bosco e pede-lhe um parecer sobre a sua Congregação. Fixando-o nos olhos, o santo sacerdote responde: “A sua é certamente obra de Deus”. Duas grandes provas teve ainda de suportar por parte do seu bispo D. Thibaudier e do sucessor, D. Duval. Depois de 16 anos de intensa actividade no Colégio S. João, pedem-lhe para se ritirar. Não há provas evidentes, só mal-entendidos e calúnias. “Sinto rebentar-me o coração. Ofereço a Nosso Senhor em espírito de penitênica e em sacrifício pela sua obra”, escreve o Pe. Dehon e obedece. Outra dura prova foi o pedido para fundir a sua Congregaçao com outra mais antiga, que não apresentava garantias de crescimento. Também neste caso o Pe. Dehon escreve: “Abandono-me nas mãos de Jesus”. Triunfa a sua profunda fé.

Fora das sacristias

Quem via em Leão Dehon um padre intelectual, doutorado em Direito Civil, Direito Canónico e em Ciências teológicas, não podia imaginar que bem depressa se revelasse um formidável realizador social. Se se quer compreender o seu estilo concreto, é preciso relembrar o que ele pensava sobre a missão do padre. Desde a primeira insersão no apostolado paroquial, ele compreendeu que uma pastoral ordinaria só pode levar a falência; é entrar num beco sem saída. Já vimos que a sua primeira preocupação foi compreender a condição humana e religiosa da sua gente e, depois agir consequentemente levando os possíveis remédios: patronatos para os operários e para os jovens, círculos para as várias categorias de pessoas, um jornal, reactivação da companhia de S. Vicente. Manda, também os seus religiosos para as fábricas de Leão Harmel em Val du Bois. Pessoalmente participa em congressos sociais e organiza semanas de formação social. Bem depressa o Pe. Dehon se torna conhecido em toda a França. Em 1893 é convidado a fazer parte da Comissão Diocesana de estudos sociais que se propõe estudar a encíclica Rerum Novarum de Leão XIII, publicada em 1891. Presidente de tal comissão é o marquês La Tour du Pin, o qual, logo passa a presidência ao Pe. Dehon. Sob a sua direcção e mediante uma sua proposta, o estudo da encíclica faz-se a partir de vários pontos de vista. Em pouco tempo chega-se ao Manual Social Cristão (1894), um texto com grande aceitação do público e traduzido em várias línguas (espanhol, úngaro, e até em árabe). A versão italiana foi revista e apresentada pelo ilustre sociólogo e futuro beato Giuseppe Toniolo. O Papa aprova verbalmente o conteúdo e o livro é adoptado como texto de estudo em muitos seminários ao longo dos anos 1895-1910. A este primeiro volume de carácter social, nos anos sucessivos seguem-se outros sobre temas específicos. Digno de especial mensão o “Catecismo Social “ (1898), com o mesmo acolhimento do que o Manual.

Os três Leões

Pode dizer-se que o último decénio do século XIX viu uma verdadeira explosão de actividades sociais por parte do Pe. Leão Dehon, em colaboração com Leão Harmel e apoiado por Leão XIII: três Leões – um nome simbólico – porque a batalha social é duríssima, dentro e fora da Igreja. A respeito do Pe. Dehon, já falámos das suas publicações e acenámos também à sua presença nos grandes congressos sociais para os quais é sempre convidado como orador de prestígio. É útil recordar aqui que em Dijon (1890) se dava início a uma formação política de nome “Democracia Cristã” que terá um nome glorioso e que então tinha como lema: “Dar Cristo ao operário e o operário a Cristo”.
Em 1897 o Pe. Leão dá início em Roma às conferências sociais que têm uma vasta ressonância e nas quais participam cardeais, bispos, sacerdotes e seminaristas dos vários colégios romanos. O Papa Leão XIII segue pessoalmente as notícias no “L’Osservatore Romano”, mas também enviando observadores que lhe referem tudo em pormenor. É daquele tempo a audiência em que o Papa o aprova com um “muito bem” e se interessa sobre as actividades da Congregação e dá a sua bênção às nossas obras e a todos os seus membros. Quer gratificar o orador com uma prelazia. O Pe. Dehon pede para ficar só com a sua identidade de religioso. Então o Papa nomeia-o consultor do Índice: é um modo evidente de o Papa demonstrar a sua aprovação, porque os consultores têm o encargo de examinar a ortodoxia das publicações.
Como se pode imaginar, as conferências romanas conferem-lhe uma notoriedade e autoridade que lhe multiplicam as chamadas a todos os níveis: diocesano, regional, nacional e internacional. Impossível mencionar toda a sua actividade frenética destes anos. Para ficar só na Itália, podemos acenar à conferência de 11 de Maio de 1897 em Milão, no salão do Paço episcopal, sobre o tema: “A evolução social cristã na Europa”. A notícia é de “ O observador católico”, jornal local que termina dizendo: “O Pe. Dehon, que teve momentos felicíssimos, no final da sua bela conferência granjeou os maiores aplausos do auditório que o tinha seguido com a máxima atenção e com o maior interesse”.
O mesmo jornal consegue uma intervista e apresenta-o assim: “Ontem tivemos na nossa redação a preciosa visita do Pe. Leão Dehon, superior dos Padres do Sagrado Coração, o famoso sociólogo francês. Vinha de Roma onde, como já é do conhecimeno dos nossos leitores, teve uma série de conferências sociais, que foram muito apreciadas e nas quais desenvolveu amplamente o programa da Democracia Cristã. O Pe. Dehon é um homem alto, de aspecto nobre, vulto inteligente; fala com exactidão e medida singulares e revela-se muito preparado nos argumentos mais interessantes da vida moderna”. É com muito gosto que lemos estas notas de louvor. Saem da Itália onde começa a movimentar-se aquela sensibilidade social que, um pouco por toda a parte, e especialmente no clero, desperta contrastes e até hostilidades.

Um escritor prolífico

O Pe. Dehon gosta do apostolado social, mas adora também o da caneta. O catálogo das suas obras não foi ainda definido, mas a quantidade dos seus escritos é imensa: obras sociais, escritos ascéticos, escritos para a Congregação, relatórios sobre viagens e várias centenas de cartas. Basta dizer que só a correspondência forma dois volumes com mais de 2.000 páginas ao todo. Obviamente nem todas as suas obras têm o mesmo valor. Apraz-nos recordar o pensamento do Toniolo sobre as suas obras sociais. Ele fez a tradução e a apresentação seja do Manual Social Cristão, seja do Catecismo Social; a propósito deste, o sociólogo italiano assim se exprime: “É verdade que é muito mais difícil preparar o pão da verdade de tal maneira que todos se possam alimentar, do que explicar aos inteligentes as teorias científicas. A clareza do espírito francês, unida à coerência dos italianos, com os quais viveu longo tempo, imprimiu nesta e nas outras obras um carácter popular, tipicamente original”. Grandíssimo espaço ocuparam os escritos ascéticos, todos eles centrados no culto e na devoção ao Coração de Jesus. Não faltam os escritos de tipo geográfico e cultural, fruto das suas numerosas e até longuíssimas viagens. Sem falar das obras que directamente dizem respeito à Congregação. Muitos, também, os artigos publicados em revistas e jornais. Relendo-os hoje, ficamos maravilhados com a lucidez das análises e a modernidade da linguagem que os torna ainda agora actuais.

Para a evangelização dos povos

No fim da sua vida escreve que desejava ser missionário. Isso não lhe foi possível, mas sentia-se missionário na pessoa dos seus missionários. Podemos até acrescentar que a finalidade implícita das suas viagens era mesmo a de se dar conta do estado e das possibilidades de evangelização. A primeira missão da sua Congregação é o Equador. Os missionários ficam lá só 8 anos, de 1888 a 1996, porque expulsos pelo governo maçónico. Entre estes está o Pe. Gabriel Grison que parte de novo para o Congo. É o primeiro bispo da Prefeitura de Stanley-Falls. Os primeiros anos desta missão, ainda viva e florescente, são muito difíceis. Os missionários escrevem páginas estupendas, deixando no terreno insalubre não poucas vidas juvenis: em 15 anos 22 mortos. Abrem-se depois outras missões: o Brasil do Sul e do Norte, a Finlândia, o Canadá e a Indonésia. Muitos o criticam, mesmo dentro do Instituto, porque não compreendem este seu lançar-se nas missões longínquas, quando os dehonianos são ainda tão poucos e, em casa, as dificuldades políticas e económicas são enormes, chamam-no imprudente, também porque com tanto activismo tem-se a impressão de que descuide muito a formação dos seus religiosos. Tais críticas chegam até ao Cardeal Gotti, prefeito da então Propaganda Fide, que prontamente responde: “Eu não sei se os Sacerdotes do Sagrado Coração são verdadeiros religiosos, no entanto sei que são óptimos missionários”. E quer ele mesmo presidir à ordenação episcopal de D. Gabriel Grison (1908).

O reino do Sagrado Coração

Ao vê-lo sempre mergulhado em tantas actividades, custa-nos imaginar qual era o espaço e o tempo que podia reservar para a sua fundação. Esta foi certamente a primeira das suas ocupações, tudo o resto vinha em função dela ou depois dela. Mas talvez seja mais exacto dizer que em primeiro lugar esteve sempre o Coração de Cristo e que tudo o resto era em função d’Ele. Tudo concorreu para centrar toda a sua existência no Coração de Cristo, começando pela educação religiosa aprendida com a mãe. Já coadjutor em S. Quintino, entra em contacto com a fundadora das Servas do Coração de Jesus, a madre Maria Ulrich, que tem sobre ele um influxo decisivo ao induzi-lo a fundar os “Oblatos do Sagrado Coração”.
No período em que procura compreender a vontade de Deus a seu respeito, fala também com a madre Verónica (Carolina Lioger), fundadora das Irmãs Vítimas do Coração de Jesus. Ela conhece um grupinho de sacerdotes que seguem a sua mesma espiritualidade. Entre eles está o Pe. André Prévot, que seguirá o Pe. Dehon. Será uma coluna portante do seu Instituto e morrerá em conceito de santidade. Citamos duas fundadoras de Congregações votadas ao Sagrado Coração, mas é preciso ter presente que entre o século XVII e finais do século XIX nasceram nada menos de que 190 Congregações com o mesmo nome. Este clima era muito forte na Igreja de então e isto explica como o Pe. Dehon antes de decidir qual o seu caminho tenha querido explorar bem o terreno para não fazer algum duplicado. Estamos nos anos 1870, quando o Dehon é fortemente atraído pela reparação ao Coração de Jesus, conforme a espiritualidade de St. Margarida Maria Alacoque. O seu ideal é S. João Evangelista, o discípulo que na hora da traição, pousa a cabeça sobre o peito do Senhor e na hora do suplício permanece aos pés da Cruz, ao lado de Maria, acolhendo o testamento de Jesus e o sinal do Coração trespassado.
Leão XIII, além de ser o Papa das encíclicas sociais, é também o Papa da devoção ao Coração de Jesus. Até nisto, em planos diversos, é claro, os “dois Leões” têm as mesmas ideias. De facto em 1899, em preparação para o Ano Santo do fim do século, - também solicitado pelas cartas da Irmã Maria do Divino Coração – publica a encíclica “Annum Sacrum” que entende predispor os ánimos para o Ano Santo, mediante a consagração ao Sagrado Coração de Jesus. O Pe. Dehon não deseja outra coisa. Na noite da passagem do XIX século para o XX, ele está em Roma e na pequena casa da Postulação celebra a Santa Missa seguida das ladainhas do Sagrado Coração, recentemente aprovadas, e recita o acto de consagração proposto pelo próprio Papa. A coroar tudo isto, a 6 de Janeiro, festa da Epifania, o nonagenário Leão XIII desce a S. Pedro e recita o acto de consagração do mundo ao Sagrado Coração de Jesus.
O Pe. Dehon, a par dos seus empenhos em campo social, ainda dedica grande parte das suas energias à composição de uma dúzia de publicações sobre o Coração de Jesus. Pode dizer-se que o programa de toda a sua vida está bem patente no frontespício da revista fundade em 1889: “ O Reino do Coração de Jesus nas almas e nas Sociedades”. Mas toda a sua vida e toda a sua espiritualidade têm como centro o culto de amor e reparação ao Coração de Jesus. É esta a chave interpretativa de todas as suas obras que tocam o seu ponto mais alto na actuação do último sonho: edificar em Roma um templo ao Sagrado Coração. A ele dedica os últimos anos da sua vida.

Viagens e guerras

O ano 1906 é particularmente importante. Por empenho pessoal do Papa Pio X, a Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus obtém a aprovação definitiva. Chegado a esta meta fundamental que permite olhar para o futuro com absoluta tranquilidade, o Pe. Dehon dedica os últimos seis meses deste ano a uma longa viagem pela América Latina. Vai primeiro ao Brasil onde já estão presentes os seus religiosos, visita depois o Uruguai e a Argentina: três nações onde a Congregação terá um grande desenvolvimento. Como de costume o Padre encheu as suas agendas de apontamentos que deram lugar ao livro: “Mil léguas na América do Sul”. Terminada esta viagem é a vez da fundação do Instituto na Itália. Em 1907 ainda há espaço para mais uma viagem . Visita a Prussia, a Dinamarca, a Finlândia e na volta, passa pela Rússia e Checoslováquia. Resultado desta viagem, a fundação da Obra em Helsínquia.
O Pe. Dehon já tem 70 anos, mas as viagens ainda não terminaram. Está pensando numa volta ao mundo. Verdade que a ideia não é sua, mas nunca tinha pensado numa viagem tão comprida. Foi assim. Em 1910 celebra-se em Montréal (Canadá) o congresso eucarístico internacional e alguns bispos amigos convidam-no a participar. Naturalmente o Pe. Dehon pensa numa possível expansão da Congregação em terras da América de Norte. Em breve, sai um itinerário de medida mundial. Terminada a viagem vai a Roma para informar o Papa Pio X sobre as várias nações e missões que visitou. Entrega também à Propaganda Fide um relatório que lhe merece da parte desta um grande louvor. Homem incansável, não obstante a sua perene fragilidade física que nunca o larga. Mas o pior ainda está para vir. Em 1914 rebenta a grande guerra (1914-1918). Em Agosto de 1914 morre Pio X e a 8 de Setembro sucede-lhe o Cardeal Giacomo Della Chiesa com o nome de Bento XV. A 20 de Março de 1917 morre a madre Maria do Sagrado Coração, fundadora das Servas do Sagrado Coração que, como já dissemos, desempenhou um papel importante nos inícios da nossa Congregação.
A guerra continua feroz e provoca tragédias. S. Quintino e toda a zona norte da França são logo invadidas pelas tropas alemãs. As casas do Instituto quase completamente destruídas. O Pe. Dehon assiste os soldados, os prisioneiros, os feridos. A sua saúde está de novo em perigo, recomeça o sangue pela boca. Obrigam-no ao exílio e, num carro para o gado passa à Bélgica. É um farrapo. Em Enghien, ao descer do comboio, cai e fere-se na cabeça. Os padres jesuitas acolhem-no com grande delicadeza e hospedam-no em sua casa até que receba o salvo-conduto para Bruxelas, finalmente com os seus. A pedido do Pe. Gasparri, o Papa Bento XV obtém-lhe uma licença de vir a Roma. Chega no dia 30 de Dezembro e já no dia 3 de Janeiro de 1918 é recebido pelo Papa com a cordialidade que se pode imaginar. Na audiência de despedida a 25 de Abril, o Pe. Dehon confia ao Papa um seu antigo desejo: que em S. Pedro haja um altar dedicado ao Sagrado Coração. O Santo Padre que gosta de se chamar “O Papa do Coração de Jesus” dispõe tudo e em pouco tempo lá está o belíssimo mosaico representando a aparição do Sagrado Coração a S.ta Margarida Maria Alacoque. Aquele mosaico recorda-nos, sim, uma amizade extraordinária, mas sobretudo que o Coração de Jesus está no coração da Igreja.

Tempo de reconstrução

A guerra terminou, mas ficaram as ruinas. Está tudo para reconstruir: as casas, estabelecer os contactos entre os dispersos, mas especialmente reunir os espíritos e os corações. É que com a guerra morrem também os ideais. Muitos religiosos chamados às armas tinham combatido em fileiras opostas; era preciso recuperar a unidade e a fraternidade. O Padre volta à França, mas a guerra continua. Depois do armistício de 11 de Novembro de 1918, vai outra vez a caminho de Roma. Em Bolonha vive uma etapa importante, o seu 50º de sacerdócio. Os tempos são difíceis, mas podemos dizer que toda a cidade está unida à pequena comunidade dehoniana para lhe fazer festa. Em Roma canta a missa, absorto na suas recordações do já distante 1869. É nesta circunstância que na audiência com Bento XV manifesta o desejo de construir uma igreja em Roma e é o próprio Papa quem lhe indica o melhor lugar. Em Abril de 1919 após uma ausência de 16 meses, está em Bruxelas e a sua primeira preocupação é estabelecer um clima de serenidade e de esperança. Vem depois a reconstrução das casas. Perante este espectáculo não pode conter as lágrimas: “Reconstruiremos pela terceira vez”.
Tem de preparar-se para o capítulo geral, o primeiro depois do desastre da guerra. Aos capitulares oferece dois volumes sobre a vida interior e mais outros dois sobre o “Ano do Sagrado Coração”, fruto daquela imobilidade forçada durante a guerra. Em Outubro do mesmo ano tem a alegria de participar na consagração da basílica de Montmartre, em presença de uma centena de bispos.

A última empresa

A ideia do Pe. Dehon sobre a igreja em Roma era grandiosa, porque devia ser digna do centro do cristianismo e devia surgir com o concurso de todo o mundo para a entronização universal do Coração de Cristo. O Papa é o primeiro a abrir as subscrições com uma oferta. A empresa é gigantesca e cheia de dificuldades se se pensa nos problemas económicos do pós-guerra. O Padre põe-se logo a trabalhar e lança uma subscrição em sete línguas, que envia ao episcopado italiano, francês, inglês, alemão, espanhol, português, e em língua latina. A 18 de Maio de 1920 o cardeal Pompili abençoa a primeira pedra na presença de amigos cardeais e bispos. Pode dizer-se que daqui em diante quase todo o seu tempo é destinado a procurar os meios financeiros: uma fadiga ímproba com resultados nem sempre visíveis.
Em 1923 o Pe. Dehon completa 80 anos e ainda anda empenhado nesta obra que chama “ a mais difícil”. Mas tem a certeza de que o Coração de Jesus providenciará. Com efeito, dez anos mais tarde (1934), com o sacrifício de muitos, o grande Templo dedicado ao Sagrado Coração de Cristo Rei é finalmente inaugurado. Esta última fadiga do Pe. Dehon consistia sobretudo no esforço de envolver o mais possível, todas as realidades eclesiais na construção de uma realidade visível que fosse fortemente significativa do Reino do Coração de Cristo nos corações e nas sociedades. De maneira evidente, este profeta dos tempos modernos, que sempre lutou pela justiça social e pela promoção do laicado, quis que se juntassem aqui todos aqueles que se sentiam atraídos ao amor e à reparação do Coração de Cristo.
Em 1904, em audiência com o Papa Pio X, pode referir que os associados e agregados à Obra já são 16.000. É o início daquela que chamamos hoje a “Família dehoniana”, que acolhe num único ideal não só os “Sacerdotes do Sagrado Coração”, mas também todas aquelas realidades (congregações, associações, comunidades) e todos aqueles que, de qualquer modo, vêem no Pe. Dehon um pai e um guia para viver o Evangelho na espiritualidade do Coração de Cristo!

A caminho do fim

A idade do Pe. Dehon avança, mas não pode parar o trabalho para a Congregação. Depois da publicação do Código de Direito Canónico é necessário actualizar as Constituições. A aprovação definitiva chega a 5 de dezembro de 1923, quando ele já tem 80 anos. O Papa aprova a decisão capitular – contrária ao novo Código de Direito Canónico – que estabelece que o Pe. Dehon seja reconhecido como Superior Geral até o fim da vida. A Congregação alarga os seus confins com novas fundações na Espanha, nos Estados Unidos, na África do Sul, na Indonésia e na Finlândia. No meio de todas estas ocupações, o Pe. Dehon ainda arranja tempo para escrever a Vida do Pe. Rasset que julga ser um exemplo para quem trabalha na pastoral. Nos anos seguintes (1922-23) publica dois volumes de Estudos sobre o Sagrado Coração. Vê-os como um contributo para uma Suma doutrinal sobre o Sagrado Coração. Este homem nunca pára: como não ficar admirado que, com 80 anos feitos, se ponha a traduzir do italiano para o francês um guia de Roma para os peregrinos do ano santo que se aproxima (1925). Chamam-no o “trés bom pére” (Pai muito bom), mas revela um carácter indomável, até ao fim.

No amor do Coração de Cristo

O Pe. Dehon já não viaja. O seu coração levanta-se cada vez mais para o céu, para o Coração de Cristo, com a Virgem das Dores, em companhia dos seus santos protectores. A 8 de Dezembro escreve o testamento civil. O pouco que ainda lhe resta do seu património, destina-o às Missões e ao Templo de Roma. Nas suas “Notas Quotidianas”, no 1º de Janeiro de 1925, podemos ler: “Este é o último caderno. Talvez o último ano da minha vida. Fiat!”. Sente já perto o fim. Durante o verão rebenta uma perigosa epidemia de gastrenterite e são vítimas também alguns padres da comunidade. O nosso ancião substitui-os, assiste-os, mas no fim, também ele a apanha. A 4 de Agosto, a muito custo celebra a missa em memória de S. Domingos. É a última. Tem de ser acompanhado ao quarto e ajudado a deitar-se. Ofereçe os seus sofrimentos “pela Obra e em expiação dos meus pecados”. Acorrem os parentes.
A 11 de Agosto os médicos constatam que a gastrinterite está curada, mas que o coração está cedendo. O Pe. Assistente geral adverte-o e propõe-lhe a administração dos sacramentos. O Pe. Dehon responde: “Sim, Sim, com todo o coração!”. E cheio de alegria, sai-se com uma salva de palmas. De manhã, na presença de toda a comunidade recebe o Viático e, à tarde, a Unção dos enfermos. São momentos de grande comoção, especialmente quando ele pede a todos o perdão das suas culpas e o Pe. Filipe, em nome de todos, pedindo-lhe o perdão para as incompreensões e faltas de amor filial, pede-lhe também a bênção para toda a Congregação. Ninguém domina a comoção e são muitas as lágrimas que deslizam pelas faces de todos. Este dia parece que nunca mais acaba. O Pe. Dehon quer ver a todos, um por um, os padres da comunidade. Para cada um tem a última palavra e a sua bênção. Deseja renovar os seus votos religiosos e pede o crucifixo da sua primeira profissão. Pronuncia lentamente a fórmula e repete três vezes o “voto de imolação”.
No dia 12, pela manhã, chega de Roma o Pe. Octávio Gasparri e traz consigo a bênção do Santo Padre. Entra em agonia. Todos estão presentes e rezam. Por uns instantes como que acorda e aponta para o quadro que representa o evangelista João que pousa a cabeça sobre o peio do Senhor e murmura: “ Por Ele vivi, por Ele morro”. E expira docemente. São 12.30 da quarta-feira de 12 de agosto de 1925. As exéquias foram celebradas em S. Quintino a 19 de agosto de 1925. Os restos mortais foram colocados na igreja de S. Martinho que ele próprio tinha mandado construir. Na oração fúnebre o arcebispo D. Binet diz: “A juventude vinha a ele com entusiasmo... É preciso ser grande, sobretudo de coração, para ser tão amado”. Todos de facto lhe chamavam: “Le très bom père” (o papá).

A caminho do altar

Quêm lê estas breves páginas já fica com uma ideia da enorme actividade do Pe. Dehon. Ele foi sobretudo um homem de Deus, que passou a sua existência à luz do carisma recebido, em dom do Espírito. A ideia central da sua espiritualidade é o amor e a reparação ao Coração de Cristo.. Apreendeu-a com sua mãe, alimentou-a na escola de S.ta Margarida Maria Alacoque, das Servas e das Vítimas do Sagrado Coração, e colheu-a em plenitude na contemplação do Coração trespassado sobre a cruz, junto a Maria e S. João. Os documentos recolhidos em vista da sua beatificação demonstram que ele viveu de modo heróico as virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade.
Não foram poucos os momentos durante a sua vida nos quais só a fé o manteve firme na sua vocação de fundador, nos quais foi despojado de tudo, só a esperança o fez viver; momentos nos quais só o amor pôde alimentar o perdão a quem o odiou e hostilizou em todos os modos. O amor e a reparação ao Coração de Jesus eram um todo-um e não podiam reduzir-se a piedosas orações e santos desejos, mas tinham de passar pela edificação do Coração de Cristo nos corações e nas sociedades. Daqui a sua paixão vigilante pela Igreja, pela formação do clero, pela justiça social. Estava bem consciente de que a reparação tinha de passar pela cruz, mas nunca aceitou uma via “dolorista”. Não lhe faltaram as cruzes, às vezes até duríssimas, mas, a exemplo de Cristo que se deixou pregar na cruz, alimentou sempre a virtude do abandono nas mãos do Pai. No “testamento espiritual” para os seus religiosos escreveu: “Meus carissimos filhos! Deixo-vos o mais maravilhoso dos tesouros: o Coração de Jesus. Ele pertence a todos, mas tem ternuras particulares para com os sacerdotes que lhe são consagrados, que são inteiramente dedicados ao seu culto, ao seu amor, à reparação que Ele pediu desde que sejam fiéis a esta bela vocação”.
Mas o Pe Dehon não morreu, está vivo, não só porque está viva a Congregação através das obras dos seus filhos e seus herdeiros, mas também porque, de toda a parte nos chegam notícias de graças alcançadas pela sua intercessão. Há já 25 anos foi publicada uma abundante lista de testemunhos de graças e favores recebidos por sua intercessão. Uma torrente de bençãos que ainda não cessou, como o testemunham revistas que enviamos aos nossoss benfeitores e devotos do Sagrado Coração.
Em 1952 foi introduzida a causa para a sua beatificação. Com decreto de 8 de Abril de 1997 foi reconhecida a heroicidade das suas virtudes. A comissão dos médicos atestou que a rapidíssima cura de um doente brasileiro de uma peritonite aguda generalizada, depois da invocação do Pe. Dehon e a aplicação de uma sua relíquia, não tinha explicação científica. Seguiu-se a aprovação dos teólogos e da comissão dos cardeais para a causa dos santos que, em data de 20 de Janeiro de 2004 emitiu o parecer favorável à beatificação do Servo de Deus.
Com decreto definitivo a 19 de Abril de 2004, o Papa João Paulo II declara que o Pe. Leão João Dehon entrará nas fileiras dos beatos da Igreja Católica. É beatificado na praça de S. Pedro em Roma no dia 24 de Abril de 2005.

Presença dehoniana em Moçambique

Os Sacerdotes do Coração de Jesus ( = Dehonianos) chegam a Moçambique aos 27 de Março de 1947. São quatro missionários cheios de fé, de entusiasmo e de boa vontade, mas sem quaisquer meios materiais. Estabelecem-se na parte norte da Zambézia. São os únicos missionários e está tudo por fazer. O povo, na sua quase totalidade, é ainda pagão exceptuando algumas comunidades protestantes e a presença muçulmana ao longo da costa. Sem perder a coragem e com a maior simplicidade lançaram mãos às obras, iniciando o seu trabalho sobretudo com as crianças, dando-lhes a possibilidade de uma certa alfabetização rudimentar e de um primeiro contacto com a doutrina cristã por meio das simples perguntas do catecismo.
Nos anos seguintes chegaram outros missionários e assim foi possível iniciar uma grande actividade de construções de escolas e de centros missionários com as respectivas igrejas, internatos, pequenos hospitais, oficinas e plantações. Desta feita, a missão torna-se, pouco a pouco, o centro da região e de atenção das povoações. No espaço de 15 anos surgem 12 novas missões, com todo o conjunto de obras várias. Além do aspecto social, há sempre a finalidade de fundo, própria do missionário, mandado a anunciar o Reino de Deus. Ainda no início, organiza-se uma escola especializada para formar jovens catequistas. Estes, depois de dois anos de curso, são inseridos nas várias povoações prestando as suas actividades catequéticas. Entretanto, vai já crescendo a ideia de preparar, aos poucos, a autonomia desta igreja. Assim, os Dehonianos em 1960 abrem já o seminário da Congregação para preparar os jovens à vida religiosa e sacerdotal.
Por volta dos anos 70, o espírito do Concílio Vaticano II abre para uma nova visão da Igreja e da presença missionária. É um momento oportuno para a reflexão e revisão dos próprios métodos pastorais, dando assim início a uma “nova” presença e uma “nova” actividade. É a redescoberta da Igreja como “povo de Deus” e das comunidades cristãs como “comunidade-família”. Esta realidade eclesial abre campo para uma variedade de ministérios laicais que dão entusiasmo, juventude e autonomia às comunidades, à Igreja. A história tem o seu caminho. Aos 25 de Junho de 1975 surge o tão desejado dia da Independência! A alegria do povo é indescritível! Os missionários participam com entusiasmo e satisfação neste grande evento da maturidade do povo moçambicano. Neste momento histórico, os missionários dehonianos (cerca de 50) estão em plena actividade: todas as missões têm uma boa presença missionária; as comunidades cristãs possuem um profundo dinamismo de vida eclesial; as casas de formação para a vida religiosa e sacerdotal estão cheias de jovens. Tudo deixa entrever uma boa sementeira e uma Igreja jovem e dinâmica! Mas, logo a seguir à Independência, acontece o inesperado evento das nacionalizações. Os missionários, de repente, encontram-se sem igrejas, sem escolas, sem postos de saúde, sem seminários, sem catequistados, sem casa, sem liberdade de visitar os cristãos e com mil suspeitas atrás de si. São vistos como reaccionários e propagadores de superstições que “impedem o verdadeiro crescimento do homem”. É um golpe duro e violento! Parece ter chegado o tempo de “sacudir o pó das sandálias”, dizer adeus e ir-se embora!
Os missionários, porém, compreenderam que não era o povo que não os queria, mas só os chefes políticos, embebidos de ideologia marxista e, então, por amor deste povo, unanimemente decidem ficar. Privados de tudo, mas com grande fé e humildade constroem as suas palhotas e vivem assim evangelicamente a sua solidariedade com o povo. Levam para a frente a actividade apostólica, suscitando e animando as pequenas comunidades ministeriais, defendendo-as dos assaltos prepotentes da ideologia do partido no poder. O totalitarismo político em todos os sectores da vida social provoca no povo mal-estar e reacção. Nasce, assim, a guerra civil. A guerra dura 16 anos. É a destruição total. Nesta nova situação, altamente perigosa, os missionários dehonianos decidem, mais uma vez, ficar no seu lugar como sinal de solidariedade com o povo, “profetas do amor e servidores da reconciliação”, como rezam as constituições da sua Congregação. Finalmente, ao 4 de Outubro de 1992 acaba a guerra e volta a liberdade. Pouco a pouco são retomadas algumas das antigas missões, mas com métodos e critérios mais adequados à nova situação. Nota-se um empenho particular no campo da formação para a vida religiosa e sacerdotal; aos poucos foi reactivada a escola de artes e ofícios, assim também outros pequenos projectos dentro do campo social, como é típico do nosso carisma de dehonianos.
Mas, o mais importante e fundamental da nossa presença no meio do povo foi e é o “anúncio do Reino de Deus”, formando e acompanhando as comunidades cristãs para, assim, elas próprias se tornarem fermento e promotoras dos verdadeiros valores humanos e cristãos. O território confiado aos dehonianos, em 1994 tornou-se Diocese. Foi e é o resultado de todo o trabalho missionário; é uma consolação, mas também um empenho! Na fé de uma paz duradoira e no advento do Reino de Deus, seguindo o exemplo e confiando na ajuda do P. Dehon, sentimo-nos sempre “profetas do amor e servidores da reconciliação”! Actualmente os dehonianos estão presentes em Moçambique nestes lugares: Maputo, Fomento, Quelimane, Gurúè, Milevane, Alto Molócuè, Gilé e Nampula.